A nossa sociedade




Numa tarde banhada pelo quente e sempre afável sol de verão, o chão era riscado pelos peões de quem tão contente ficava de os ver rodopiar sem nexo e sem norte. As meninas preferiam o sossego de um banco e a delicadeza vaidosa de um chá que dá o prefixo ao elegante e colorido objecto que o sustenta de nome chávena. Chá esse que escorria pela boca do gordinho e morno bule que por vezes não contém o saboroso sabor açucarado desse líquido, deixando-o escapar porcelana abaixo.

Esta podia ser a poética descrição (como tanto Eça de Queiroz gostava de escrever) de uma bela tarde de verão em que os meninos brincavam ao sol.
Mas porquê este pedaço de texto que destoa tanto do título?
Bem, o que se passa é que este parágrafo se refere a tempos passados, possivelmente antes mesmo de o leitor desta crónica ter nascido. Mas não deixa de ser um passado, que outrora foi presente e bem real e palpável. Hoje em dia, quem prefere passar os calorentos dias de sol num parque? Uma minoria, que é apenas preenchida quase totalmente pela população sénior.
Não, a população que se encontra no auge da sua vida (entre os 20 e 40 anos de idade) prefere estar na periferia destes parques, nomeadamente em cafés e esplanadas (de preferência com o portátil ligado à frente) criticando e invejando a calma vida levado por essa população que tanto tempo já viveu.

Mas, infelizmente, não podem permanecer nesse pacato café cujo dono já é um bom amigo e conhecido (e que oferece alguns petiscos à conta da casa de vez em quando), visto que o dever chama! É verdade, o trabalho hoje em dia rouba a maior parte do nosso tempo, quase todo. E a seguir a essa pausa de almoço na frequentada esplanada, ala para o emprego que se faz tarde. Mas, assim que se chega lá, uma robusta mas de uma delicadez irresístivel máquina de café ao pé da porta do nosso escritório sugere mesmo uma moeda. Afinal, que mal pode fazer uma pausazinha de cinco minutos? Mais razões ainda, junta a essa mesma máquina está o Júlio e a Vanessa, pelo que podemos dar ainda dois dedos de conversa e aproveitar e falar do quão mal o nosso país está e de como Sócrates lançou o país no desemprego.

Vá, a pausa tem de terminar, o dever afinal chama! Em frente a um portátil calculando os lucros e despesas do últimos mês da secante empresa para a qual se trabalha, ainda conseguimos abrir discretamente uma janela do Windows Messenger para falar com aquela amiga que tão longe está e com a qual temos um milhão de novidades para contar.

Ufa, hora de saída! O dia hoje tinha sido bastante cansativo, há-que ligar à mulher a combinar um cineminha seguido de um jantar num belo restaurante (pago com o mais recente empréstimo do tão simpático e sempre atencioso banco) para poder descansar e descomprimir o stress. Mas antes de chegar a casa, uma paragemzinha pelo quiosque para comprar o tal maço de tabaco que tão cedo acaba e tanto retira ao final do mês, mas sem o qual não conseguíamos viver. Enquanto é dado o troco, uma olhada rápida e inocente na manchete "Portugal cai na bancarrota" obriga-nos a descartar mais uns trocos pelo tão apetecível título que tanto furor vai fazer pelos amigos. Falar mal com os argumentos ali escritos fará de nós uma pessoa extremamente bem vista.

O jantar com a esposa correu lindamente, o lagostim grelhado combina excelentemente com o Quinta do Noval, do porto. A noite não podia terminar melhor com o blockbuster The King's Speech.
Mas nem tudo corre bem. No dia seguinta recebe-se a notícia de despedimento no emprego. Chegando a casa como um homem despedaçado nunca deve chegar (a maçaneta da porta já caiu duas vezes em dois estrondos) vê-se As Tardes da Júlia que cria uma ilusão tão enganadora (mas tanto apetecível) de que tudo está a correr bem e que não há nenhum problema no mundo, excepto os dos desgraçados dos que lá apareçem.
Mas o mal não se fica por aqui. A mulher chega a casa com os olhos húmidos prontos a desabrotar lágrimas com uma carta na mão. É do banco, a casa vai ser despojada.

Não há outra solução, há que organizar uma manifestação! Vamos seguir o exemplo dos egípcios, vamos revoltar-nos todos!
Pois bem, a manifestação foi combinada, e todos ficaram a saber dela através das redes sociais que tanto cobrem Portugal, fazendo-o parecer pequenino.
Eram milhares, denominando-se Geração à Rasca. Protesta-se contra tudo e contra todos os que estiverem no seu caminho. Afinal, não há dinheiro para espelhos!
Apesar de não ter mudado muito, a manifestação foi considerada uma vitória e o primeiro passo num processo de revolução semelhante ao 25 de Abril.

Esse tão conhecido e adorado 25 de Abril, revolução dos cravos, em que todo o mal terminou! Existem 17 partidos políticos em Portugal, mas só dois estiveram no poder desde então, decerto por serem os melhores e mais justos.
Contudo, continuamos a fazer manifestações e revoluções para, depois, no dia de eleições, irmos votar novamente nos mesmos. É que eles falam tão bem na televisão, são de certeza muito boas pessoas!

Pois é, a revolução está no acto de votar.
Hoje em dia todos se queixam de todos num país em que ninguém está disposto a mudar. A culpa não é do Sócrates. A culpa não é do governo. A culpa é de todos nós, por os termos posto no poder, legalmente (sem recorrer a manifestações sem nexo, sem objectivo concreto), e por não termos pachorra para mudar o nosso estilo de vida. Fazem-se empréstimos para pedir um esmpréstimo para comprar um carro que combina com a casa de luxo junto à praia, a segunda. Mas ninguém está disposto a cortar nas despesas. Apenas a pegar no telefone e gastar dinheiro no voto em Homens da Luta no festival da canção. De certeza que farão um brilharete e darão uma boa imagem do nosso país nessa Europa fora.

Pois é, a sociedade está diferente.
Dantes tomava-se um chá num belo dia de sol. Agora esse dia de sol extende-se a uma semana no Algarve.
Depois de um dia concerteza preenchido por árduo trabalho e esforço útil para melhorar a nossa vida, todos nós arranjamos um tempinho à noite para ir cuidar das nossas vaquinhas no Facebook.


Cumprimentos,

André Lopes.



1 comentários:

LastLombax disse...

Grande imagem!! LOL

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