Página Branca - Janeiro




Ninguém morre duas vezes

Ninguém morre duas vezes, disse-me a felicidade ontem ao jantar. “Quem é poeta não merece”. E eu, que nunca encontro as palavras para rimar os poemas que não escrevi, qual será o meu destino?

De madrugada não há nada com que conversar, só um alento me alarma e me empurra, encolhe, rebaixa para debaixo do chão, para a sepultura, e é preciso ser morto-vivo para rastejar de lá para fora.

Ninguém morre duas vezes. Mas mesmo assim, notei que as lápides tinham sido roubadas, e as deixadas para trás, tombadas, não tinham nome. Fechei os lábios pelos anónimos esquecidos, e até este dia não encontrei palavras que pudesse rezar. Ninguém olha de frente para o espelho. Ninguém sabe que nome tem. Nunca ninguém ouviu os gritos sentidos, que não me deixam dormir. Ninguém morre duas vezes.

Arranquei um pedaço de história, quando ouvi o carro chegar quarta-feira à tarde. A última pétala já caiu, o relógio já tocou, a música já acabou.

André Crispim



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