Página Branca - Abril




Ontem não Adormeci

Ontem não adormeci, como quem fica acordado à noite. Ontem não adormeci, e como que por pena do vulgar estive mesmo para te chamar, mas por ser alvorada e por saber que estavas deitado, também a dormir, pousei o telefone e desisti. 

Dei por mim a passear pela casa. Primeiro o quarto, depois o corredor, sala de estar, de jantar, cozinha e acabei debruçado na varanda. Passei pela garrafa de Martini e pela garrafa de Bacardi, derrubada, derramada pelo chão, passei pelo tapete com as manchas de café, pelas chaves do carro em cima da mesa, e pelos quadros pendurados nas paredes que ninguém liga.

Só que enquanto olhava para a rua, lembrei-me e lá decidi descer.
Na estrada estava frio, como em casa. Frio como quem gela. Frio como a arca frigorífica, como quem ama e desdenha. “Inspiração”… de quem “inspira” (para dentro, para fora, para dentro, para fora), a geada da noite gélida, da madrugada febril. Quando dei por mim, estava já a andar outra vez.
Não havia ninguém, por ali àquela hora, era só eu. Quando passava um carro, não dizia nada e seguia em frente.

Pareceu-me que estava a andar às voltas, como quem anda em círculos, sem chegar a lado nenhum. Sem chegar a minha casa. Sem chegar às janelas com as luzes ainda acesas, para encontrar o meu caminho. Sem chegar a um lugar onde pudesse caminhar com alguém, e não sozinho. 

Chegava a casa e tinha a porta da rua aberta, do prédio no meu andar! Ficaram esquecidas, como as chaves para as abrir. Esquecidas como os deveres e as tarefas de anteontem. Entrei e estava tudo escuro. Deu-me vontade de dormir. Fui para o quarto, deitei-me na cama e fechei os olhos. 

Não adormeci.

André Crispim



0 comentários:

Enviar um comentário

Mensagens Recentes Mensagens Antigas Página Inicial