Crónica 21: Fanboy



CRÓNICAS



A comunidade de jogadores é bastante peculiar. Existem muitos fenómenos que são praticamente exclusivos de quem vive intensamente esta indústria e, de certa forma, é isto que traz alguma identidade e interesse a fazer parte desta grande família, e isso nota-se em vários aspectos.

Desde já, a estranha palavra gamer, que merece uma crónica exclusivamente sua. Em qual outro tipo de entretenimento, ou arte, existe uma palavra que define uma pessoa que a desfruta? Sim, uma pessoa que ama cinema chama-se cinéfilo, assim como uma pessoa que não consegue parar de ler pode-se chamar de rato de biblioteca. No entanto, estas palavras ou expressões são apenas atribuídas aos extremos, aos connoisseurs e obcecados.

Já a palavra gamer não define apenas os mais interessados ou que dedicam mais horas a esta indústria. Alguém que apenas jogue Civilization duas horas aos fins-de-semana tem tanto direito de se auto-intitular de gamer como outro que tenha um conhecimento profundo sobre toda a história dos videojogos, que possua todas as consolas desde o lançamento da Atari 2600 e dedique 20 horas semanais a este passatempo. Deveras peculiar.


Mas não é sobre este fenómeno em particular que quero falar nesta crónica. Há outro que é bem mais bizarro e prejudicial para nós, gamers, do que a própria palavra gamer. Falo-vos dos fanboys, indivíduos que mais do que uma preferência por este ou aquele estúdio, esta ou aquela série, este ou aquele fabricante de consolas, têm uma paixão exacerbada (e muitas vezes idiótica) por uma marca.

Fanboys sempre existiram. As guerras de consolas entre Nintendo e Sega podem ter sido as primeiras a demonstrar este caso de uma forma mais acentuada. Mario ou Sonic, Megadrive ou Super Nintendo, esta foi alvo de muitas discussões por recreios desse mundo fora. O marketing de ambas as empresas também ajudou a alimentar esta "guerra" com a famosa campanha da Sega nos EUA "Genesis does what nintendon't", que numa tradução deficiente significa "A Megadrive faz o que a Nintendo não", e a consequente resposta "Nintendo is what Genesisn't", ou "A Nintendo é o que a Megadrive não é".

E quem nunca teve uma experiência destas? Eu bem me lembro quando tinha 7 anos e discutia com os meus amigos o quão superior era a minha Dreamcast contra a PlayStation 2 deles. Sim, eles tinham o Jak and Daxter, mas eu tinha o Sonic Adventure e qualquer rapazinho com olhos na cara conseguia entender que nada bate o pequeno ouriço azul. Sinceramente!


No entanto, hoje cresci. Agora já tenho uma PlayStation 2, assim como a minha Dreamcast, e para compor a festa também tenho uma Xbox. Ambas são espectaculares, ambas têm os seus prós e os seus contras, e na verdade, sinto que com 7 anos era um idiota por dizer que a consola da Sony não tinha "jogos fixes".

No entanto, e desde a ainda última geração de consolas, há muito que mudou. E o motor desta espectacular mudança foi o crescente número de pessoas com acesso à internet. Agora, conversas de recreio cujo o tom não subia de um ou outro comentário sarcástico sobre o quão palerma era o cabelo do Jak em comparação com o do Sonic, subiram agora para algo muito mais perigoso e, para ser sincero, humilhante para todos nós.

Desde quando é que faz sentido, e perdoem-me pelo palavreado que se segue, chamar alguém de "paneleiro de merda" quando este prefere a Xbox 360 à PlayStation 3 ou Wii? Ambas as consolas são mais ou menos diferentes e podem servir necessidades gamísticas diferentes. Ambas as consolas são sem dúvida excelentes consolas que podem dar muitas horas de diversão a qualquer um de nós. Já para não falar que cada um tem direito à sua opinião e que se duas pessoas não têm preferências em comum, certamente que não virá nenhum mal ao mundo.


Mas os insultos não são o mais prejudicial. Faz parte do que é a internet e inerente a um meio de comunicação em que reina o anonimato. Se me é permitido citar o filme Jay and the Silent Bob e manter a minha integridade enquanto escritor de crónicas respeitáveis, "a internet é uma ferramenta de comunicação utilizada pelo mundo fora onde as pessoas podem-se juntar e queixar-se sobre filmes e partilhar pornografia um com os outros". Se trocarmos a palavra filmes por videojogos temos uma descrição adequada a esta crónica sobre o que é a internet.

O problema é quando estes fanboys deixam as empresas da indústria tomar decisões erradas e escaparem-se sem consequências. Quantas vezes é que uma empresa sai-se com uma péssima iniciativa e vemos inúmeras pessoas a tentarem defendê-la? Aconteceu com as decisões claramente anti-consumidor da Microsoft com a Xbox One, assim como com a forma horrível como a Sony lidou com os problemas com a PlayStation Network em 2011. E a defesa não veio através de argumentos sólidos ou convincentes, apenas desculpas esfarrapadas de pseudo relações públicas de ambas as empresas.

E notem como a palavra que eu utilizo é empresas. A Sony, a Microsoft, a Nintendo, a EA, a Activision, a Valve, a Ubisoft, todas elas são empresas, multinacionais para quem o objectivo final é aumentar margens de lucro, ir aos bolsos de quem confia neles e consequentemente, lixar os jogadores. E quem mais confiança deposita em cada uma destas empresas senão os respectivos fanboys?


Eles também são os mais distraídos, que muitas vezes sacrificam a exigência de um jogo melhor por um amor incondicional declarado a uma multinacional. Ser fanboy de uma companhia de videojogos faz tanto sentido como ser fanboy da Coca-Cola. Claro que podemos preferi-la à Pepsi, mas que sentido faz continuar a bebê-la se em vez de água começarem a utilizar urina de rato?

E, se pensarmos bem, não há outro meio de entretenimento em que isto ocorra. Claro que tenho os meus directores e escritores favoritos, assim como designers predilectos, mas no caso de um fanboy, o interesse não mora no criador, mas sim numa empresa, e isso não só não faz sentido, como muitas vezes é prejudicial às próprias séries ou consolas que adoram.

É preciso ver tudo com um olhar crítico. Não no famoso "botabaixismo" tipicamente português, mas com a intenção de melhorar o que mais gostamos. E quando for necessário, também é preciso puxar as orelhas a certas empresas ou estúdios que tomam decisões que prejudicam o jogo ou a consola. Para haver melhores jogos, é preciso haver melhores consumidores, mais informados e menos apaixonados. Porque quem gasta o dinheiro somos nós, e quem fica com ele são eles.



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